sábado, 14 de fevereiro de 2009

Tarde (Ensaio em Londres, 1977)

Era tarde... Tarde repleta de hinos e vozes... Tarde envolvida pelo correr de crianças, jovens, todos... Alegrias, correrias, diversões ordenadas... Era tarde...
Nos imensos salões o ambiente normal e já bastante conhecido... Cheirava a antigo. As amplidões dos ginásios como que se entregavam aos que desejassem fazer de seu tempo o aproveitar de uma vida saudável.
Fim de uma tarde cansativa e bem aproveitada... Fim de um momento igual ao de todos os dias!
Dessa vez o sol ajudava o mundo! Seu calor emprestava vida... Sua luz se entregava... Seus raios se perdiam...
Ao atravessar o pequeno pátio gramado que separava os prédios, um só pensamento surgiu em minha mente: aproximava-se o momento mais aguardado, mais desejado, mais presente... Era o intervalo que aparecia... Pequeno intervalo entre os esportes e o jantar.
Intervalo de minutos que se transformava em tortura de milhares de anos! Intervalo que, por si só, valia pela razão de viver! Intervalo em que o coração dava saltos, a mente rodava em turbilhões, os pensamentos se dirigiam em uma só direção. E meus passos, lentos pelo cansaço dos exercícios, levavam-me inconscientemente ao mesmo local.
Subi os primeiros degraus... Lentamente, para não ser ouvido... Parei no terceiro, espreitando a vinda de alguém.
Subi mais alguns que rangiam... Velhos que eram... Uma porta semi-aberta com um pedaço de papel por baixo – era o sinal. Abri-a e entrei.
Assoalho que rangia a cada passo... Era um martírio!
Cuidadosamente alcancei o corredor superior do prédio. Bastante abandonado por sinal. Sentia-se abandono pelo clima...
Por vezes senti-me seguro ali. Outras vezes os ruídos que ouvia criavam em mim um estado de medo de ser descoberto.
Outra porta... A última... Entrei com cuidado. Encostei-a procurando impossibilitar uma espreita alheia... Pura inocência! Se alguém, porventura, surgisse nada conseguiria impedir a abertura de tão velha e encarquilhada porta de madeira.
O quarto... Vazio. Vazio de móveis, vazio de lustres, vazio de quase tudo... Alguns cobertores velhos jogados pelo chão. As janelas, cobertas por tábuas pregadas, permitiam a invasão de raios de luz pelas mínimas frestas. Eram resquícios da tarde... Tarde que aos poucos se alongava pelo dia...
Meu coração já batia mais forte a partir do momento em que subi o primeiro degrau. Agora, dentro do quarto, ele parecia querer disparar!
Foi no instante em que confirmei a presença que eu mais desejava.
Foi então que ambos paramos. Lembro-me que ficamos imóveis e sem palavras, como costumava acontecer. Por alguns momentos procuramos ouvir sons denunciadores... Mas não ouvimos.
Bem longe reconheci as vozes dos outros que em brincadeiras diversas, procuravam aproveitar a folga da tarde.
Um pouco de alívio, mas a tensão aumentou. Um cigarro, aceso já queimado jazia ao lado da caixa de fósforos. Um cigarro aceso denunciava-se entre os dedos daquela mão.
Meu coração disparava por nada... Ou por tudo... E eu me aproximei. Dessa vez senti mais forte do que nunca o sentimento que já me era conhecido!
Sentei-me ao seu lado. Sem dizer uma só palavra olhamo-nos bem fundo nos olhos... Era o momento em que nos identificávamos em quase tudo.
Havia sido uma aventura o chegar até ali, assim como estávamos alimentando uma perigosa aventura cada vez que tornávamos mais forte nosso relacionamento.
O cigarro foi mais uma vez tragado quando, então, trocou de lábios. Minha tragada foi mais forte... Tensão...
Apagamos o cigarro. Os fracos raios de sol que, filtrados pelas frestas das madeiras da janela conseguiam penetrar no quarto, davam um colorido todo especial ao seu corpo. Eu amava aquele corpo...
Hoje nossos olhares iam mais longe...
Sem palavras nós dois nos entediamos e nos comunicávamos, fazendo dessa tarde a mais importante de todas.
Estávamos prontos para nos entregar um ao outro.
O receio de amassarmos e sujarmos nossas roupas fez com que delas nos livrássemos com cuidado. Foram colocadas por cima de um dos cobertores.
Estávamos nus. Livres das roupas e do mundo... Livres dos olhares invejosos e incriminadores... Livres...
Estávamos prontos para tudo, ávidos de fortes emoções, desejando nada menos do que o outro por inteiro!
Nossos olhares se olhavam, fundiam-se em um só. Nossas mãos tocavam-se levemente a medida que o corpo inteiro iniciava a procura do outro.
Em nossos outros encontros procurávamos evitar, a todo custo, atitudes que viessem a marcar o final de uma longa procura. Avançávamos sem que alcançássemos o termo final.
Hoje tudo me pareceu mais difícil. Nossos olhares olhavam-se diferente... Nossas mãos sentiam-se mais atraentes... Os corpos e as mentes desejaram-se demais para que uma voz do consciente conseguisse que recuássemos.
Era tarde. Lançamo-nos enfim ao domínio um do outro e os momentos que se sucederam foram alvos de expansão de sentimentos.
Sua pele muito macia, corpo bastante jovem; descobrimos aos poucos os prazeres mais escondidos... As regiões mais sensíveis, as emoções mais reais...
O tempo lutava contra nós! Avançava mais que o normal, levando tão bela tarde e trazendo o início da noite.
O escurecimento das frestas não nos perturbou. Estávamos agora lado a lado, mãos entrelaçadas, corpos se tocando levemente.
Havia sido a primeira vez que sentíamos a profundidade de um amor completo. Havíamos alcançado juntos os momentos de maior satisfação no amor. Sentíamos como se lançados fossemos em gigantescas ondas de um imenso oceano... Sentíamos-nos brincando em um veloz e inimitável balanço da natureza.
Foi a primeira vez que chegamos a tal ponto. Foi a descoberta do que sempre procurávamos. Foi o revelar de uma verdade escondida e proibida... Era o aparecer da vida... O surgir do amor... A descoberta do prazer...
A escuridão nos alcançou e acordamos desse sonho de olhos abertos. Era hora de estarmos longe dali! Chegara a hora de estarmos novamente juntos dos outros!
Um beijo prolongado ainda sobre os cobertos... Um abraço que se negava a terminar... Mas era chegado o instante da volta.
Vestíamos as roupas silenciosamente para tentar ouvir possíveis barulhos... Iniciamos a descida.
Os degraus pareciam, agora, diferentes. As portas e as paredes mais alegres e felizes... O medo normal de ser descoberto parecia não mais existir.
O próprio prédio aparentava ser mais novo e conservado... Mas na realidade tudo era como antes... Nós é que havíamos mudado...
Ao entrarmos na sala de jantar, a mesa já estava posta. Alguns olhares pareciam estar querendo dizer algo... Talvez fosse impressão... Talvez fosse verdade...
Mesa posta... Dois lugares vagos... Sentamo-nos. O ambiente era de festa... O jantar era de festa...
Da cabeceira veio o brinde. Brinde pelo meu aniversário. No centro da mesa, quinze velas se espetavam em um bolo...
Olhei em seus olhos... Seus olhos me olharam... Devemos ter corado, não sei... e jantamos...

Roberto Andersen (Londres, Primavera, 1977)